14/11/2008
15 Anos do Código de Defesa do Consumidor - Os Juizados Especiais Enquanto Instrumento da Política Nacional da Relação de Consumo.

                            A idéia de se criar mecanismos legais e autônomos com o fito de assegurar ao cidadão a defesa dos seus direitos inerentes às relações de consumo, pré-existe a Constituição de 1988.

A fim de elaborar o Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor o Dr. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, então presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, constituiu comissão composta dos seguintes juristas : Ada Pellegrini Grinover (coordenadora), Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Wantanabe e Zelmo Danari, com o fito de cumprir a Constituição de 1988 que trouxe no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, mais precisamente no inciso XXXII do art.5.º o seguinte texto : “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”.

Comentaram, à época, os Mestres Ada Pellegrini Grinover e Antônio Herman de Vasconcelos e Bejamin  que “A sociedade de consumo, ao contrário do que se imagina, não trouxe apenas benefícios para os seus atores. Muito ao revés, em certos casos, a posição do consumidor, dentro desse modelo, piorou em vez de melhorar. Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação de relativo equilíbrio de poder de barganha (até porque se conheciam), agora é o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, ‘dita as regras’. E o direito não pode ficar alheio a tal fenômeno.// O mercado, por sua vez, não apresenta, em si mesmo, mecanismos eficientes para superar tal vulnerabilidade do consumidor. Nem mesmo para mitigá-la. Logo, imprescindível à intervenção do Estado nas suas três esferas: o Legislativo, formulando as normas jurídicas de consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos esforços de formulação e de implementação. // (...) Toda e qualquer legislação de proteção ao consumidor tem, portanto, a mesma ratio, vale dizer, reequilibrar a relação de consumo, seja reforçando, quando possível, a posição do consumidor, seja proibindo ou limitando certas práticas de mercado.”[i]

Interessante observar que nem sempre a evolução dos ideais e comportamentos, de imediato, transformam a mentalidade coletiva, promovendo o equilíbrio entre os pólos de interesses antagônicos.

Com a Revolução Industrial, por exemplo, na Inglaterra, levou-se a lutar contra a escravidão, pois se precisava de um mercado consumidor aqui no Brasil, formado por trabalhadores livres e assalariados, que comprassem seus produtos. O movimento abolicionista se intensificou, através de comícios, jornais e clubes, até que em 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea – instrumento de abolição do regime escravocrata.

Vinte e nove anos após, ou seja, apenas em 12 de junho de 1917, a classe operária pela primeira vez se mobilizou em prol de reivindicar direitos, em movimento paredista eclodido em São Paulo no bairro da Moóca no Cotonifício Rodolfo Crespi quando os operários pugnavam por melhores salários, após, surgiram, diversas leis esparsas, alcançando a inserção na Carta Magna de 1937 de primeiro dispositivos constitucional de proteção ao trabalho.[ii]

Entretanto, foi só em 1.º de Maio de 1943, com o Decreto-Lei n. 5.452, reunidas as leis espaças de proteção ao trabalho em um único livro – Consolidação da Legislação Trabalhista - CLT, 55 anos decorridos da abolição da escravatura e do nascimento da classe operária brasileira.

Denota-se deste exemplo que a lei também funciona para educar e promover a cultura comportamental da sociedade, impondo condutas e prevendo sanções, em busca de proteger os mais fracos nas relações sociais, seja do trabalho, seja do consumo, seja dos mecanismos de acesso à vida com dignidade.

A implantação de um sistema de proteção e garantia aos mais vulneráveis compõem um trabalho de abnegação e idealismo, determinação associativa de mentes estudiosas em busca da difusão da idéia a fim de perpetuar sua credibilidade, como segredo da estabilidade jurídica e confiabilidade do sistema pelo cidadão e quem dele tenha interesse.

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro fruto de um processo maduro, desde a perspectiva de projeto à Lei aprovada em 1990, buscou abrigar situações não só de proteção ao consumidor, mas de disciplinar as relações de consumo em busca de uma otimização do produto e do serviço, prevendo responsabilidades e condutas, num harmônico conjunto de regras, sendo internacionalmente reconhecido como uns dos mais bem elaborados de sua estirpe, fincando-se como mais um marco no avanço, efetivo, de mecanismo em defesa da vulnerabilidade imposta ao cidadão diante de uma economia globalizada e agressiva.

Em seu dispositivo exordial se identifica, desde logo,  os fins que pretende alcançar :

 

“Art. 1.º - O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5.º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”

Observe-se a preocupação em referir e sintonizar os seus preceitos com os princípios e ditames constitucionais, definindo suas normas como de ordem pública e interesse social, o que equivale a dizer que são inderrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo, embora se admita a livre disposição de alguns interesses de caráter particular e coletivo, como se observa no art.107 do CDC – Código de Defesa do Consumidor.  

E define Consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. (art.2°, Código de Defesa do Consumidor).

Ensina o Professor Rizzatto Nunes em sua obra “Curso de Direito do Consumidor”, Ed. Saraiva, uma das obras mais completas sobre o tema, o seguinte :

“Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e também a pessoa jurídica.Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc” .

A lei emprega o verbo ‘adquirir’, que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito.

Porém como se percebe, não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire (obtém) o produto ou o serviço como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome” como destinatário final.

Assim, tem-se observado uma busca de se entregar ao consumidor uma efetiva proteção jurisdicional, todas as vezes que sofre desrespeito ao seu direito legalmente reconhecido.

Com freqüência os operadores do direito que labutam nesta seara, têm reconhecido a sua vulnerabilidade e assegurado o equilíbrio nas relações de consumo judicialmente questionadas.

Neste ponto é importante sublinhar que o Código de Defesa do Consumidor prevê a Responsabilidade Pelo Fato do Produto e do Serviço. Quer dizer, ao fabricante, ao produtor, ao construtor, nacional ou estrangeiro e ao importador é atribuída à responsabilidade, independente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a utilização e riscos.(art.13).

E define que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, repercutindo além da sua própria finalidade e atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens, caracterizando um “acidente de consumo”. Enquanto o vício repercute restritamente no produto, sem afetar a pessoa do consumidor ou qualquer outro bem.

Mais adiante, no art.14 estende a mesma responsabilidade ao fornecedor do serviço.

Adentrando-se, superficialmente na classificação da responsabilidade civil encontra-se duas espécies : subjetiva e objetiva. O Código de Defesa do Consumidor foi bastante determinado ao definir que independente da existência de culpa, ou seja, apenas pelo risco da atividade econômica eleita, responde o fornecedor pelos danos causados aos consumidores. Logo definiu que em qualquer relação de consumo a responsabilidade civil por danos que acarretem ao consumidor é do tipo objetiva. Sendo apenas necessária à identificação do nexo causal, ou seja, do elo que liga a ação ou omissão do fornecedor e o dano experimentado pelo consumidor, dispensando a efetiva identificação de “ato ilícito” – análise da culpa, responsabilidade subjetiva.

Ilustra o  Professor Sergio Cavalieri Filho que a  responsabilidade nas relações de consumo estabelecida no CDC (Código de Defesa do Consumidor), “é objetiva, fundada no risco do empreendimento, razão pela qual não seria também demasiado afirmar que, a partir dele, a responsabilidade objetiva, que era exceção em nosso direito, passou a ter um campo de incidência mais vasto do que a própria responsabilidade subjetiva.”[iii]

Há situações, entretanto, por inspiração na lei penal, que eximem de responsabilidade o fornecedor: a) quando comprovada a inexistência do defeito; e, b) quando a culpa pelo fato do produto ou do serviço for exclusivamente do consumidor ou de terceiro.

É previsão constitucional a observação, em qualquer esfera, seja administrativa ou judiciária, do devido processo legal, onde haja uma autoridade competente presidindo o procedimento / processo, e assim possa garantir o contraditório e a ampla defesa.

Em verdade, mesmo tendo o código alcançado a adolescência, pois já completados 15(quinze) anos de sua existência entre nós, não se alcançou, ainda, no meio popular o entendimento maduro e equilibrado quanto à efetiva lesão do direito nas reclamações nos órgãos administrativos competentes, nem mesmo no âmbito do judiciário, registrando-se excessivas queixas muitas vezes não respaldadas em lei.

Tal fenômeno não é de se estranhar, pois a Lei n.º 9.099/95 abriu ao cidadão, nas causas que o seu valor não ultrapassem o equivalente a 20 salários mínimos o requerimento/reclamação direta sem assistência de Advogado. Logo, a dificuldade de se interpretar o que seja defeito e vício, quando se configura o dano material e o moral, ou mesmo quais os prazos legais que devem ser respeitados, é muito freqüente e constatada pela análise empírica dos processos e procedimentos acessados. Ensejando elevado índice de indeferimento dos processos junto aos juizados especiais que têm competência para conhecer e julgar as querelas inerentes às relações de consumo e consequentemente, uma possível insatisfação popular inerente e compreensível.

Concentrando-se na esfera da responsabilidade objetiva do fornecedor quanto aos danos morais, no dizer do Prof. Silvio de Salvo Venosa - “Dano moral consiste em lesão ao patrimônio psíquico ou ideal da pessoa” [iv] nota-se  -  talvez pela carência financeira que vem sofrendo a população brasileira em face do acelerado processo de concentração de renda e nivelação da classe média pelo piso e não pelo teto ou média - uma busca insistente do consumidor de ver reconhecida situação do tipo comezinha, incapazes de agredir e/ou lesionar o patrimônio moral de uma pessoa comum, sempre no afã de se beneficiar de um indenização nesta seara em favor do seu patrimônio material.

Ensina o Mestre Orlando Gomes ao caracterizar o dano moral “como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos” classificando-se, desse modo, em dano que afeta a ‘parte social do patrimônio moral’ (honra, reputação etc.) e dano que molesta a ‘parte afetiva do patrimônio moral’ (dor, tristeza, saudade etc.); dano moral que provoca direta ou indiretamente dano patrimonial (cicatriz deformante etc.) e dano moral puro ( dor, tristeza etc.)”[v]

Por seu turno, o Ilustre Professor e Magistrado Sílvio Venosa, esclarece que  “(...) Em muitas situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer dissabor comezinho da vida que pode acarretar a indenização. Aqui, também é importante o critério objetivo do homem médio, o bonus pater familias: não se levará em conta o psiquismo do homem excessivamente sensível, que se aborrece com fatos diuturnos da vida, nem o homem de pouca ou nenhuma sensibilidade, capaz de resistir sempre às rudezas do destino.(...)”[vi]

Como se observa o dano moral representa algo que é capaz de atingir, indubitavelmente, e, diante de um paralelo com a vida cotidiana, qualquer dos mais profundos dos bens do ser humano, sempre trazendo à análise cada situação posta com exclusividade, pois o subjetivo é particular e próprio de cada pessoa. A tristeza de quem nunca teve seu nome inserido em cadastro negativo de crédito, não pode ser assemelhada a quem constantemente o tem. Logo o mesmo fato – registro de nome no cadastro negativo de crédito – pode repercutir em proporções diferentes a cada pessoa, mas sempre em coerência com a sua história.

É neste ponto, que muitas vezes, ajuízam-se ações semelhantes, mas de partes, pessoas, distintas, e os resultados na seara do dano moral não são coincidentes.

Mister grifar que o princípio constitucional da isonomia, não induz que todos sejam uniformemente tratados, mas que sejam dispensados tratamentos aos diferentes na proporção de suas desigualdades, e assim, diante da força de um e da fragilidade de outro, assegure-se o equilíbrio em nome da justeza da lei diante de todos.

Lamentavelmente, tal insistência em se requer pretensão sob o manto do dano moral, com grande índice de impertinência, tem levado a uma constante visualização de característica de aventura jurídica.

A tela hodierna apresentada é preocupante. Recentemente o Conceituado Magistrado Paraibano – Dr. Geraldo Emílio Porto – escreveu Artigo que foi publicado em jornal de grande circulação no estado e no sítio www.ampb.org.br onde exterioriza sua preocupação, a qual não é apenas sua, quanto uma possível “indústria do dano moral”: “O Judiciário, nos dias presentes, está abarrotado de pedidos de indenizações por danos morais, o que gera até uma certa preocupação nos círculos jurídicos. / Os motivos são os mais diversos. Há casos de pessoas que compraram eletrodomésticos e esses aparelhos apresentaram defeitos, pelo que os seus proprietários batem às portas da Justiça, buscando indenização por supostos danos morais. / É de se indagar – qual o dano moral que a falha mecânica do eletrodoméstico acarretou ao cidadão?”.

E completa : “ O sentido do instituto do dano moral é outro, totalmente diverso, do que está sendo utilizado de forma às vezes até risível e abusiva. O Ministro César Asfor Rocha do Superior Tribunal de Justiça,  Relator  do Recurso Especial 215666, originário de   Ação de Indenização Por Dano Moral, lecionou de maneira clara que ‘(...) mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral’.”

Foi esta manifestação que nos levou a refletir sobre a gravidade do momento em que se comemoram os 15 anos do CDC, quando ainda não se identifica um amplo discernimento quanto a real situação dos fatos de consumo e sua capacidade de gerar um direito indenizatório.

Entendo, que passa, inicialmente, pela falta de orientação de um profissional técnico. Como se necessita de um médico para diagnosticar uma doença e o remédio adequado; de um engenheiro para se calcular a estrutura e resistência de uma obra de alvenaria; exigir-se a democratização do acesso à assistência jurídica pelas populações mais carentes.

Em consonância com o art.5.º do Código de Defesa do Consumidor, os cartórios de distribuição e/ou de recebimento de reclamações dos Juizados Especiais deveriam ser preparados com equipes interprofissionais, e principalmente, com Bacharéis em Direito e/ou Defensores Públicos capacitados, a fim de prestar um serviço de atendimento individual e personalizado, onde se possa ouvir e filtrar cada reclamação, verificando se há respaldo jurídico-legal e esclarecendo ao cidadão o seu real direito. Destarte, prestando-se um serviço de qualidade, com respeito ao povo como destinatário final e ao princípio da eficiência do serviço público.

Como resultado, ter-se-ia menos ações infundadas em curso abarrotando os Juizados Especiais, que não conseguem exercer em sua plenitude o critério da celeridade, descaracterizando o seu fim maior em face da excessiva quantidade de reclamações distantes do respaldo legal e muitas vezes incompatíveis com a informalidade e ausência de complexidade, findando em extinções de processos sem julgamento de mérito.

 

 

*Juiz de Direito/4.º JEC da Capital/PB

 

 

 

 

 

Bibliografia.


[i] FILOMENO, José Geraldo Brito, Manual de Direitos do Consumidor, Ed. Atlas, SP 2000;

[ii] NASCIMENTO, Amauri Mascaro, Curso de Direito do Trabalho, Ed. Saraiva, SP 1989;

[iii] CAVALIERI FILHO, Sergio, Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros Editores, SP, 2000, p.28;

[iv] VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito Civil, V. III, Ed. Atlas, 1.ª Ed-2001, pág.649;

[v] in CAHALI, Yussef Said, DANO MORAL, Ed. RT, SP,2005, p.22;

[vi] VENOSA, Silvio de Salvo, Ob. Cit, p.515;

Autor:   Eduardo José de Carvalho Soares

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