14/11/2008
A chicana das exceções de suspeições e o assaque à magistratura

"Quem faz injúria vil e sem razão,
Com forças e poder em que está posto,
Não vence, que a vitória verdadeira
É saber ter justiça nua e inteira."

Camões (1525-1580)

O processo é o instrumento utilizado pelo Estado, através do Poder Judiciário, para solucionar os litígios havidos entre seus cidadãos. Para que esse processo tenha efetividade, é preciso que as partes nele envolvidas tenham ciência de sua utilização e consciência de seu valor para a pacificação social.

 

Infelizmente, o que temos visto, nos últimos tempos, são ações de partes, de procuradores e até de magistrados, na contramão desse fim.

 

A prática processual, hodiernamente em voga, especialmente nas lides da Justiça Eleitoral, de requerer a suspeição do Juiz de Direito, sem que para isso exista motivo, com a finalidade única e exclusiva de suspender a tramitação regular do processo e adiar seu julgamento, tem causado consideráveis prejuízos à imagem do Poder Judiciário, fomentando a idéia de lentidão e de parcimônia com os poderosos.

 

 Isso se dá pelo fato de que, argüida a suspeição do magistrado, a Lei determina que o processo fique suspenso até que se decida se o juiz é ou não suspeito para o julgamento da causa. (CPC, art. 306)[1].

 

A exceção de suspeição, embora seja prevista em lei, deve ser utilizada para a defesa do cidadão que tem prova da suspeição do juiz e não para se fugir da aplicação da lei, tão somente com a finalidade de paralisação do processo, a fim de ganhar tempo e debochar do adversário.

 

Não basta a lei prever a possibilidade de suspeição. Para o recebimento da exceção de suspeição, faz-se necessária a apresentação e comprovação de fatos e fundamentos da imparcialidade do juiz. Em primeiro lugar encontram-se o princípio de inocência, a honradez e a dignidade do magistrado que só poderão ser afastados com comprovação de fatos que façam dessa presunção uma demonstração.

 

O cargo de Juiz de Direito exige de seu pretendente que se submeta a um concurso público de provas e títulos e, após sua assunção ao cargo, a lei exige conduta irrepreensível na vida pública e particular. Ao juiz, segundo preceito legal, é proibido exercer suas funções em processo que seja impedido ou suspeito. Não é comum, e, pode-se dizer que seja rara, a procedência de uma exceção de suspeição, justamente pelo fato de que, em sua esmagadora maioria, os juizes são éticos e cientes de suas responsabilidades.

 

O trabalho de um Juiz de Direito é delimitado pela lei e pela iniciativa alheia, que não a sua. Assim, um juiz só pode agir até os limites da lei e quando provocado. Nenhum ato judicial, portanto, é ato de vontade do próprio juiz, senão reflexo do ordenamento jurídico. O Juiz de Direito tão somente julga pautado por parâmetros do contraditório e da ampla defesa.

 

Na verdade, o que existe é uma chicana jurídica, que revela, para a população desinformada, frouxidão de poder por parte do Judiciário, por entender os que aguardam um desfecho rápido do processo, que há pactuação do Poder Judiciário na morosidade do julgamento, visando beneficiar a parte excipiente.

 

Muito embora essa atitude seja de autoria de uma das partes e patrocinada por advogados, a população não ver assim e sempre espera dos juízes a aplicação da lei. Nesse ponto, a opinião pública tem razão. Exige-se do magistrado, seja ele Juiz de Direito, Desembargador ou Ministro, uma postura ética e responsável na condução do processo. É seu dever velar pela rápida solução dos litígios, conforme determina o Código de Processo Civil, em seu artigo, 125, inciso II. Tenho afirmado que é lícito aos litigantes criar e defender teses mirabolantes e de cunho duvidoso, entretanto, reafirmo que compete ao juiz reprimir e não deixar que aleivosias e chicanas possam atravancar o bom andamento do processo.

 

Melindres ou interesses contrariados não são motivos para se alegar suspeição de magistrado. Para os que buscam contrariar a lei e as condutas éticas, com a finalidade de se beneficiar do processo, existem penalidades, e, compete ao juiz aplicá-las e velar pela regularidade do processo, sem receio de contrariar ou agradar quem quer que seja.

 

A conduta do julgador, ao se deparar como uma exceção de suspeição, não pode se reservar a receber e fazer processar. Espera-se do juiz que analise a viabilidade de seu recebimento e processamento.

 

Para se alegar a suspeição de um magistrado, a lei exige fundada prova de que o julgador tenha ligação com uma das partes, seja por amizade ou inimizade; por dívidas, relação de subordinação ou ainda que seja interessado no julgamento da causa. Ou seja, que exista parcialidade.

 

Assim como toda a causa que se leva ao Judiciário, a exceção de suspeição exige regras. A petição inicial deve se apresentar com os requisitos necessários, entre eles, a indicação “do fato e dos fundamentos jurídicos do pedido” de suspeição (CPC, art. 282, inc. IV). Portanto, a exceção de suspeição precisa, necessariamente, demonstrar que o juiz incorre em algumas das causas de suspeição no processo.

 

Nosso ordenamento jurídico adota o princípio da substanciação, que exige do autor da ação descreva a causa de pedir (causa petendi), apontando os fatos e sua relação com o direito pleiteado. Não basta  simplesmente indicar causas previstas em lei, é necessário, portanto, que se demonstre os fatos que se amoldam à lei.

 

Outro fator que precisa ser assimilado pelo magistrado é que, se a lei fala que o juiz receberá a exceção (CPC, art. 306), a contrario sensu(em sentido contrário) ela também autoriza o não recebimento da exceção, quando não haja fundamentos para seu recebimento.

 

Assim, não se vislumbrando nenhuma das causas elencadas nos artigos 134 e 135 do CPC, a exceção não deve ser recebida e, acaso recebida pelo Juiz de Direito, deve ser rejeitada liminarmente pelo Relator nos tribunais.

 

Nesse sentido, são os ensinamentos abaixo:

 

 Humberto Theodoro Júnior:

 “A apreciação e julgamento do incidente tocam ao Tribunal Superior a que se acha subordinado o juiz impugnado. Quando, porém, ocorrer objetivamente o descabimento da exceção (por intempestividade ou invocação de fato que, à evidência, não esteja entre os previstos nos arts. 134 e 135 do CPC), poderá o próprio Juiz exceto denegá-la liminarmente, dentro do dever legal que lhe toca de ´velar pela rápida solução do litígio´ e de ´prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça´(art. 125, II e III)”.[2]

 

Alexandre de Paula:

“(...)por importar afastamento do magistrado do exercício da jurisdição e envolver matéria de ordem moral e de alta relevância, que pode afligir a pessoa do suspeitado e suscitar até menosprezo à própria dignidade da justiça, para acolhimento da exceção de suspeição ‘é indispensável prova induvidosa’[3]

 

O Juiz de Direito Josemar Dias Cerqueira, em artigo intitulado “A supeição é uma exceção, não uma regra”, também apresenta solução para o problema, asseverando que:

 

“Não se pode deixar de observar que o legislador menciona no art. 306 a expressão ‘recebida a suspensão’, sinalizando a possibilidade de que ela pode não ser recebida, ainda que não haja disposição semelhante à do art. 310 do CPC.

Defende-se, há algum tempo, a possibilidade do próprio magistrado imputado como suspeito indeferir a inicial, quando manifestamente fora de propósito. Não é o caso do magistrado atacado adentrar no mérito da ponderação dos argumentos apontados, sopesando sua adequação aos casos previstos na legislação, pois esta é tarefa do Tribunal. Sustenta-se, sim, que existem pressupostos formais à admissão da medida extrema no mundo jurídico.

A razão está nos princípios que regem a atuação do magistrado, além da própria regulamentação técnica quanto às petições dos autos, prevista, dentre outros, no art. 282 do CPC, sem falar nas causas de extinção do art. 267, IV e VI do CPC, aplicáveis ao incidente por similitude.[4](sublinhei)

 

Há também decisões judiciais que já se propõem a acabar com essas chicanas, reconhecendo a possibilidade do magistrado, em vista da falta de fundamento indeferir in limine a exceção de suspeição, in verbis:

 

“(...) Assim, visando o juiz não apenas fazer-se justiça, mas também impor rapidez ao término do processo, é possível, excepcionalmente, indeferir de plano exceção de suspeição proposta contra ele." (2º TACv- SP MS 439.555-9ª Câm. - Rel. Juiz EROS PICELI - J. 13.9.95)

 

O artigo 310 do CPC autoriza a rejeição liminar também da exceção de suspeição, com vistas ao seu conteúdo, quando manifestamente improcedente.( Agravo 159344. 8ª Câmara do 2º TAC/SP. Rel. Juiz Garreta Prats, JB 119, Ed. Juruá, p.112)

 

O Poder Judiciário precisa se firmar na defesa intransigente da regularidade processual. Para tanto, após se aperceber dessa nova chicana jurídica, deve ter postura proativa, no sentido de reprimir a conduta de imediato, inclusive condenando a parte excipiente em má-fé(CPC, art. 18).[5]

 

Nesse contexto que inspira suspeitar mais do excipiente que do excepto, os tribunais têm contribuído sobremaneira para a perpetuação e multiplicação dessa prática com a praxe forense de só julgar a exceção após todo o processamento do feito, muitas vezes com infrutíferas instruções probatórias, sem antes analisar as condições de procedibilidade.

 

Não é de exigir do tribunal que tenha conduta corporativista em relação ao juiz. Isso não. Até porque, trata-se de um julgador imparcial que precisa está atento a boa condução do feito. A expectativa do excepto é que só haja recebimento e processamento de exceções quando apresentados fatos e fundamentos legais. Espera-se dos tribunais que não transformem o julgador em réu perante a sociedade, quando patente a manobra de tão somente procrastinar e adiar o julgamento da causa.

 

                  Os magistrados precisam de uma nova consciência, voltada para a Ciência do Direito e não simplesmente para os paradigmas da praxe forense. Os atos atentatórios a dignidade da Justiça precisam ser reprimidos sempre que se mostrem conflitantes com os interesses da Justiça.

 

Dalmo de Abreu Dallari, no já consagrado “O Poder dos Juízes”, aponta causas e motivos pelos quais os juízes têm levado a magistratura a uma situação de subserviência em relação a outros poderes e interesses outros, que não a Justiça. Eis um trecho:

 

“A perpetuação de situações injustas, acobertadas sob a aparência de legalidade e, por essa via, com fingido reconhecimento da legitimidade, tem sido um dos principais instrumentos utilizados para a formação e a sustentação de camadas sociais superiores e poderosas. É isso que explica, por exemplo, uma parcela considerável dos desníveis sociais e regionais, existentes no Brasil. E não é difícil perceber que a proteção dos privilégios injustos se apóia, em grande parte, na manutenção da magistratura dependente, que recebe alguns benefícios dos poderosos e, em contrapartida, lhes dá proteção na eclosão dos conflitos. Desse modo, a magistratura é vítima e, ao mesmo tempo, agente desse processo antidemocrático e desumano, que só poderá ser interrompido se ocorrerem mudanças profundas na organização da sociedade e do Estado. Isso é necessário, entre outras coisas, para que se possa ter a magistratura independente.”

“É preciso que os juízes queiram ser independentes e trabalhem para isso. Na realidade, as transigências freqüentes, a renúncia aos seus valores próprios, a tolerância com a violência e arbitrariedade, a aceitação das ‘razões de Estado’, a adoção de teses que implicam a negação de convicções solenemente proclamadas, tudo isso, que tem estado presente no comportamento da magistratura como instituição, permite a suposição de que, na realidade, a magistratura não quer ser independente.”[6]

 

Quanto à conduta dos advogados que se prestam a esse papel, há de se reafirmar, como dizia Sócrates, pela escrita de Platão que “só pratica o mal quem não conhece o bem”. Noutras palavras, embora haja previsão legal para se interpor, por advogado, exceção de suspeição, é preciso que o profissional tenha consciência ética de atuar nas causas nobres. (Oportet ut bonas causas et  veragiter agant advocati). Disto cuidará o mercado que saberá depurar seus profissionais.

 

Temos assim que enfrentar o problema em três vertentes possíveis. A primeira, numa campanha nacional, encampada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) com a finalidade de mudança legislativa para que o recebimento da exceção de suspeição não acarrete a suspensão do processo. A segunda, na mudança de comportamento e na quebra de paradigmas por parte dos juízes em não receber exceções sem fatos e fundamentos, requisitos exigidos pelo Código de Processo Civil para todas as ações, inclusive as exceções. E por último, a imposição pelos tribunais de entendimentos estreitos com o fim de não viabilizar o processamento de exceções sem qualquer fundamento plausível ou real, indeferindo-as liminarmente.

 

Espera-se que prevaleça o respeito ao Poder Judiciário e a seus juízes, como resguardo da justiça, da ordem democrática, calcadas em preceitos éticos e princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.

 

Cajazeiras-PB, 29 de julho de 2006.

 

Edivan Rodrigues Alexandre

Juiz de Direito

Titular da 4ª. Vara da Comarca de Cajazeiras.

 

 

 



[1] Art. 306. Recebida a exceção, o processo ficará suspenso(art. 265, III), até que seja definitivamente julgada.

[2]  Theodoro Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol I. 25ª Ed.. Pág. 386. – Rio de Janeiro:Forense, 1998

[3] PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado. V. II, 1ª ed., p. 135, São Paulo: 1976.

[4] CERQUEIRA, Josemar Dias. A suspeição é uma exceção, não uma regra . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 459, 9 out. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5623>. Acesso em: 18 jul. 2006.

[5] Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.

 

[6] Dalmo de Abreu Dallari. O Poder dos Juízes. Pág.59. São Paulo: Editora Saraiva, 1996.

[6] Theodoro Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol I. 25ª Ed.. Pág. 386. – Rio de Janeiro:Forense, 1998

 

Autor:   Edivan Rodrigues Alexandre

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