14/11/2008
A inconstitucionalidade da EC 41 ante as cláusulas pétreas originárias do Poder Constituinte

Nos últimos tempos a Constituição Federal vem sendo alvo de sucessivas modificações sob as mais dispares justificativas e ao labor das conveniências do governante de plantão. A pretexto de possibilitar a governabilidade do País, quando se sabe que a realidade é outra bem diferente, os sucessivos stablishiments, vêm perpetrando mediante emendas à Constituição, verdadeira violência aos direitos do cidadão e um desrespeito inominável à vontade do legislador constituinte originário, sendo a mais recente a de número 41 que alterou o inciso XI do art. 37 da Carta Magna, subtraindo direitos adquiridos, inerentes à irredutibilidade dos proventos, vencimentos dos servidores públicos e subsídios dos agentes políticos aposentados ou não, direitos protegidos por cláusulas pétreas das quais o legislador constituinte derivado anda a fazer tabula rasa.

Uma leitura singela ao artigo 9º da citada emenda basta a esta conclusão:

"Art. 9º. Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza".

A melhor exegese do tema reclama a transcrição do art. 17 do ADCT, a que remete o art.9º da EC nº 41:

"Art. 17 – Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, nesse caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título".

Do dispositivo resulta clara a pretensão do legislador derivado de reavivar a eficácia do art. 17 do ADCT, com o deliberado objetivo de amesquinhar a remuneração dos agentes políticos que legitimamente percebem subsídio acima do novo teto constitucional.

Ocorre que o art. 17 do ADCT, enquanto manifestação do Poder Constituinte originário – incondicional, autônomo e inicial – pode alterar situações constituídas anteriormente à promulgação da Constituição. Porém emenda constitucional, porque decorrente do Poder Constituinte reformador – derivado, condicionado e subordinado – está sujeita a limites materiais, que a impedem de alcançar direitos e garantias individuais do cidadão.

O método de elaboração legislativa, utilizado no art. 9º da EC n 41, que, em vão, procura socorrer-se do art. 17 do ADCT, constitui indisfarçável tentativa de burla à garantia individual do direito adquirido, consagrado no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Tanto assim que em julgado recente (RE n. 298.695-0/SP - 06/08/2003), decidiu o Supremo Tribunal Federal que "a garantia da irredutibilidade de vencimentos é modalidade qualificada de direito adquirido e projeta-se para o futuro, de modo a assegurar o servidor contra a redução de estipêndio licitamente reajustado".

O Ministro Carlos Mário Velloso, em artigo dedicado ao tema, publicado em Temas de Direito Público, Belo Horizonte, l994, p.448/449 pondera que: "..um direito adquirido por força da Constituição, obra do Poder Constituinte originário, há de ser respeitado pela reforma constitucional, produto do Poder Constituinte instituído ou de 2º grau, vez que esse é limitado, explícita e implicitamente pela Constituição".

A par dos limites impostos ao Poder Constituinte derivado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 466/DF, em que foi Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO (RTJ 136/26), fez a seguinte advertência: “O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explicitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade”.

Segundo a abalizada cátedra de JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, pág. 628), a garantia atinente à irredutibilidade de vencimentos “significa que nem o padrão, nem os adicionais ou outras vantagens fixas poderão ser reduzidos”.

Manifestando-se a esse respeito, assim deliberou o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 2.075 MC/RJ (D. J. de 27.6.2003, Seção 1, pág. 28): “A garantia constitucional da irredutibilidade do estipêndio funcional traduz conquista jurídico-social outorgada, pela Constituição da República, a todos os servidores públicos (CF, art. 37, XV), em ordem a dispensar-lhes especial proteção de caráter financeiro contra eventuais ações arbitrárias do Estado. Essa qualificada tutela de ordem jurídica impede que o Poder Público adote medidas que importem, especialmente quando implementadas no plano infraconstitucional, em diminuição do valor nominal concernente ao estipêndio devido aos agentes públicos.

Explicitando o alcance desse princípio constitucional, disse o preclaro Relator, proficiente Ministro CELSO DE MELLO, em seu erudito voto: “Esta Corte, pronunciando-se sobre o alcance da cláusula constitucional da irredutibilidade de vencimentos, deixou assentado que a garantia em questão “veda a redução do que se tem” (RTJ 104/108, Rel. Min. MOREIRA ALVES).

A reforma operada na Constituição Federal de 1988, pelo Congresso Nacional, por meio da EC nº 41, de 19.12.2003 (DOU de 31.12.2003), determinou, em linha contrária, que se considere, na fixação do teto dos vencimentos/proventos, as “vantagens pessoais”, inclusive a “parcela recebida em razão de tempo de serviço” (art. 37, XI, com a redação da EC nº 41/2003, e arts. 8º e 9º da mesma emenda constitucional), expressamente ressalvadas pelo poder constituinte originário do limite máximo de remuneração dos servidores públicos (art. 39, § 1º, da CF/88, texto primitivo).

Diante dos argumentos jurídicos esposados pela mais alta corte de justiça do País, penso ser preciso se entender, entender mesmo, sem paixão ou preconceitos, que ninguém é simplesmente favorável a que se perceba salários, vencimentos, proventos, estipêndios, etc, em valores acima de um teto que, antes de tudo, é moralizador e bom para a Sociedade. O limite máximo salarial é o ideal, mormente em um País como o Brasil, em que a grande massa brasileira de trabalhadores ganha menos de dois salários mínimos.

Todavia, também é preciso compreender, compreender mesmo, da mesma forma sem paixão e sem preconceito, que não compete ao Poder Judiciário deixar que uma cláusula pétrea, como o direito adquirido, seja eliminada pelo Constituinte Derivado, de 2a categoria, limitado, que neste momento está atingindo os ganhos salariais dos servidores porque, amanhã, poderá vir também a eliminar a ampla defesa, o contraditório, considerar lícita provas ilícitas ou obtidas ilicitamente mediante tortura ou outros meios que a própria Imprensa termina também por não aceitar e, quem sabe, até chegar ao ponto de abolir os direitos à saúde, à liberdade de imprensa, a liberdade individual e à própria vida. É aí?

O Poder Judiciário é bom que se diga, não pode ser comprometido com planos econômicos de nenhum Governo. Não o foi com o de Fernando Collor de Melo. Não o foi com o de Fernando Henrique Cardoso e não deverá sê-lo com o atual nem com os futuros. O seu compromisso - do Poder Judiciário - terá de ser sempre com a lei constitucional e a Constituição de seu País.

A par do cumprimento da Constituição por todos os súditos, e particularmente pelos parlamentares, pelos juízes e pelo stablishiments de plantão, é de se lembrar à erudição do famigerado Ministro Celso de Melo que em voto proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade pontificou: "Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e nas Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos Tribunais, especialmente porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos" (ADIN 293-7 - DF, Rel. Min. Celso de Melo, STF, DJU de 16/04/93, pág. 6429). "Traidor da Constituição é traidor da Pátria "(Ulisses Guimarães).

O Juiz, portanto, é obrigado a cumprir e fazer cumprir as leis constitucionais e a Constituição. Gostem ou não. Aceitem ou não, porque o traidor da Constituição será mais indigno quando se tratar de um magistrado que ao assumir o cargo mormente por concurso público de provas e títulos, jurou cumpri-la e para tanto lhes é outorgado pela própria Constituição as garantias da vitaliciedade, da irredutibilidade dos subsídios e da inamovibilidade.
Conclui-se, portanto, que na senda da pacífica e torrencial jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, forçoso é admitir, data venia, que, no exercício de competência constituinte derivada, em face da proibição de serem propostas emendas que atentem contra “os direitos e garantias individuais”, não pode o poder reformador, seguir contra aquela limitação material explícita, subtrair da imunidade ao teto remuneratório “gratificações pessoais”, já incorporadas aos estipêndios dos funcionários públicos diante do obstáculo intransponível do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

O Autor é Juiz de Direito, Professor Universitário e Especialista em Direito Civil

Autor:   Josivaldo Félix de Oliveira

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