Autor: Juiz Iano Miranda dos Anjos, Titular da Vara Única da comarca de Pilões (PB)
15/03/2017
Uma controvérsia surgida recentemente prende-se à eleição para a mesa diretora dos tribunais, em particular, o TJPB. Pois bem, como órgão do poder judiciário, nos termos da LOJE, sinto-me no dever de me pronunciar sobre a questão, num esforço inafastável no sentido de aprimorar nossas instituições democraticamente, por acreditar que todos nós, que fazemos o Poder Judiciário, temos um papel fundamental na construção permanente do estado democrático de direito a que se propôs a nossa constituição e o próprio povo brasileiro.
Dispõe a lei complementar à constituição de nº 35/79 , LOMAN, sobre a matéria específica das eleições nos tribunais estaduais:
“ Art. 21 - Compete aos Tribunais, privativamente:
I - eleger seus Presidentes e demais titulares de sua direção, observado o disposto na presente Lei...
Art. 95 - Os Estados organizarão a sua Justiça com observância o disposto na Constituição federal e na presente Lei...
Art. 102 - Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antigüidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição”.
A constituição em vigor quando da entrada em vigência da LOMAN é a de 1967, alterada substancialmente pela Emenda nº 1/1969, produzida pela junta militar que assumiu o país após o afastamento por doença do ditador em exercício, Costa e Silva, alteração de tal monta a ponto de alguns considerarem que passou a vigorar uma nova constituição. Como se não bastasse a ofensa a qualquer estado que se queira arvorar como democrático, a constituição de 1967 foi produzida por um Congresso Nacional legitimado como constituinte pelo ATO INSTITUCIONAL Nº 4, baixado pelo governo instituído após o golpe militar de 1964, num instante em que vários opositores ao regime tinham seus direitos políticos cassados ou estavam presos unicamente por suas convicções políticas. Referida Constituição - em vigor à época, cuja análise é de suma importância, posto que a própria LOMAN diz que devem ser observados os princípios constitucionais, no que é apenas redundante em face da primazia dos mesmos sobre todo o ordenamento jurídico - assim se posicionava como estruturadora do Estado Brasileiro:
“Edita o novo texto da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967.
OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e
CONSIDERANDO que, nos têrmos do Ato Complementar nº 38, de 13 de dezembro de 1968, foi decretado, a partir dessa data, o recesso do Congresso Nacional;
CONSIDERANDO que, decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo Federal fica autorizado a legislar sôbre tôdas as matérias, conforme o disposto no § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968;
CONSIDERANDO que a elaboração de emendas a Constituição, compreendida no processo legislativo (artigo 49, I), está na atribuição do Poder Executivo Federal;
PROMULGAM a seguinte Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967:
Art. 1º. O Brasil é uma República Federativa, constituída, sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios...
Art. 15. A autonomia municipal será assegurada:
I - pela eleição direta de Prefeito, Vice-Prefeito e vereadores realizada simultâneamente em todo o País, em data diferente das eleições gerais para senadores, deputados federais e deputados estaduais;
II - pela administração própria, no que respeite ao seu peculiar interêsse, especialmente quanto:
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação de suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; e
b) à organização dos serviços públicos locais.
§ 1º Serão nomeados pelo Governador, com prévia aprovação:
a) da Assembléia Legislativa, os Prefeitos das Capitais dos Estados e dos Municípios considerados estâncias hidrominerais em lei estadual; e
b) do Presidente da República, os Prefeitos dos Municípios declarados de interêsse da segurança nacional por lei de iniciativa do Poder Executivo...
§ 3º A intervenção nos municípios será regulada na Constituição do Estado, sòmente podendo ocorrer quando:
a) se verificar impontualidade no pagamento de empréstimo garantido pelo Estado;
b) deixar de ser paga, por dois anos consecutivos, dívida fundada;
c) não forem prestados contas devidas, na forma da lei;
d) o Tribunal de Justiça do Estado der provimento a representação formulada pelo Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados não Constituição estadual, bem como para prover à execução de lei ou de ordem ou decisão judiciária, limitando-se o decreto do Governador a suspender o ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade;
e) forem praticados, na administração municipal, atos subversivos ou de corrupção; e...
Art. 73. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.
Art. 74. O Presidente será eleito, entre os brasileiros maiores de trinta e cinco anos e no exercício dos direitos políticos, pelo sufrágio de um colégio eleitoral, e sessão pública e mediante votação nominal.
§ 1º O colégio eleitoral será composto dos membros do Congresso Nacional e de delegados das Assembléias Legislativas dos Estados...
Art. 115. Compete aos Tribunais:
I - eleger seus Presidentes e demais titulares de sua direção;
Art. 144. Os Estados organizarão a sua justiça, observados os artigos 113 a 117 desta Constituição e os dispositivos seguintes:
...
Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:
§ 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.
§ 2º Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
§ 3º A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
§ 4º A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.
§ 5º É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.
§ 6º Por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo se o invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta, caso em a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com escusa de consciência.
§ 7º Sem caráter de obrigatoriedade, será prestada por brasileiros, no têrmos da lei, assistência religiosa às fôrças armadas e auxiliares, e, nos estabelecimentos de internação coletiva, ao interessados que solicitarem, diretamente ou por intermédio de seus representantes legais.
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”.
Pois bem, trouxe acima alguns trechos da constituição vigente à época da LOMAN atual para tentar exemplificar o caráter antidemocrático de tal legislação constitucional e infraconstitucional. Caráter ditatorial que não admite mais o Estado Democrático Brasileiro a partir da vigência da Constituição de 1988, a qual determina no seu art.1º, caput e art.3º,IV, princípios fundamentais de caráter constitucional da República em que vivemos, expressamente, mandamentos de aplicação imediata para todas as instituições nacionais, máxime para aquelas em que ocorra QUALQUER processo eletivo: DEVE SER DEMOCRÁTICO E AFASTAR QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAÇÃO. Flagrante a diferença entre a constituição em vigor quando da produção da LOMAN e a atual, o que não poderia ser diferente, uma vez que a constituição em vigor foi promulgada por uma Assembleia Nacional Constituinte eleita democraticamente, que em seu preâmbulo diz que se destina tal constituição a instituir um Estado Democrático, ao passo que a constituição para a qual se voltava a LOMAN foi editada por uma junta militar que mais uma vez usurpou o poder do povo brasileiro e, substituindo o ditador de plantão, Costa e Silva, promulgou uma emenda com feição de nova constituição, a de 1969 . Os princípios fundamentais da nossa constituição democrática são uma demonstração flagrante de tal diferença:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE EM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Só uma constituição totalitária, não democrática, poderia compactuar com uma disposição normativa como a contida no art.102 da LOMAN, que afasta o direito político de desembargadores com assento mais jovem na corte de concorrerem aos cargos da mesa diretora em igualdade de condições com os demais. Negar o direito de todos os desembargadores apresentarem os seus nomes para sufrágio dos seus pares à composição da mesa diretora dos tribunais é tolher um direito político que alcançaram ao chegarem à corte e ostentarem a qualidade de cidadãos brasileiros sob a vigência da constituição em vigor a partir de 1988. Não pode vigorar um dispositivo normativo - que privilegia os desembargadores com mais tempo de assento no tribunal, discriminando os mais jovens , afastando-os do processo como passíveis de serem eleitos - produzido durante um regime que consagrou a supressão de direitos não apenas políticos, numa época em que havia presos políticos, delitos de opinião e as eleições eram indiretas ou mesmo não existiam, como no caso das capitais dos estados e estâncias hidrominerais, como vimos retrotranscrito. Estabelecer um requisito discriminatório – tempo de assento na corte - para um desembargador ter o direito político de ocupar a mesa diretora é estabelecer um fator discriminatório que atenta contra os princípios fundamentais do próprio Estado Brasileiro, conforme o caput do art.1º e o inciso IV , parte final, do art.3º, todos da Constituição Federal, não custa repetir. A própria LOMAN diz em seu artigo 95, retrotranscrito, que primeiramente devem ser observados os ditames constitucionais, os quais não mais agasalham a discriminação de antiguidade, e só depois os ditames dela própria. Portanto, patente que a vigência de tal discriminação é compatível com a carta ditatorial de 1967/1969, não com a Constituição de 1988 em vigor.
Só para enfatizar e ilustrar o quanto é violento e fruto de um estado totalitário o citado art.102 da LOMAN, o quanto é explícito em sua violência ao estado democrático de direito e em particular aos direitos de cidadania dos próprios membros da corte, tal dispositivo sequer prevê que aqueles membros mais antigos, que teriam direito quase que automático ao assento na mesa diretora, antes colocassem seus nomes à apreciação dos seus pares por livre e espontânea vontade, ao reverso, terão que aceitar o cargo mesmo a contragosto, À FORÇA, como diz o povo, acaso não manifestem antecipadamente o desejo de não ocupar a mesa diretora e mais, apenas se tal recusa for aceita não ocuparão o cargo. É como se o tempo de assento na corte tivesse o poder mágico de garantir àqueles membros mais antigos o devido tino administrativo, a competência - muitas vezes advindas de estudo e vocação - administrativa para gerir de forma mais eficiente que os demais o Poder Judiciário Estadual e tais pessoas não poderiam se negar, por princípio, a prestar seus insubstituíveis serviços ao Poder Judiciário compondo a mesa diretora.
Não se pode olvidar também a ofensa aos princípios da administração pública, máxime o princípio da eficiência, ungido explicitamente à categoria de princípio constitucional pelo art.37 da Constituição Federal. Aceitar a vigência do dispositivo da LOMAN no que tange ao critério de antiguidade e da aceitação tácita do cargo é afastar os princípios e ditames constitucionais em vigor e consagrar uma norma discriminatória e ineficiente, fruto de um estado de exceção que não consagrou em seu texto constitucional e muito menos infraconstitucional, o estado democrático de direito e os princípios a ele inerentes, repito mais uma vez. Dentro do conjunto de possibilidades é possível que os desembargadores mais antigos sejam os mais talhados para os cargos da mesa diretora, mas o fato é que se suas conduções não forem precedidas de uma deliberação democrática - com a garantia de que todos com assento na corte tenham o mesmo direito de pleitear o cargo, elegendo o mais capacitado, segundo o entendimento democrático dos próprios magistrados -, ressuscitaremos ou manteremos vivas disposições de um regime ditatorial, que não reconhece o direito político de iguais, que limita o acesso à direção de órgãos importantes utilizando critérios discriminatórios e de força, repelidos há quase trinta anos pela constituição em vigor. Muito embora não queira utilizar um clichê, não posso deixar de expressar minha indignação diante de tal RANÇO TOTALITÁRIO em nossa LOMAN. Rogo que a AMPB se pronuncie no sentido de consagrar o estado democrático de direito e aperfeiçoar as instituições estaduais, dizendo do direito político de todos os desembargadores, e não apenas eles, mas os juízes de primeira instância também, se apresentarem e serem sufragados pelos colegas como candidatos eleitos democraticamente para mesa diretora do TJPB. Por fim, peço desculpas por repetir, é preciso dar efetividade ao princípio maior consagrado em nossa carta constitucional e explicitado no art.1º, ausente da Constituição anterior, o de que o nosso estado é democrático e, desta forma, inafastável a ideia de que, assim como os desembargadores têm assegurado o seu direito de serem candidatos em potencial a cargos na mesa diretora, igualmente este direito assiste a todos os outros membros do Poder Judiciário, posto que todos sentirão diretamente os efeitos da gestão da mesa diretora, e, como diz o povo, muitas cabeças pensam melhor do que poucas. A democracia é uma construção na qual se convida à participação e não se implementa a exclusão. Ou seja, repito, não apenas os desembargadores - os juízes de segunda instância em exercício - têm assegurado o seu direito em questão, mas também os juízes de primeira instância. É preciso que se concretizem as mudanças ocorridas de 1969 para cá no processo de democratização do país. Não mudou apenas a forma de nós grafarmos as palavras, como vimos nos trechos transcritos da constituição pretérita, mas mudou também o próprio estado, o qual passou a ser democrático por princípio e fim, como se verifica do preâmbulo constitucional.
Desde já agradeço a atenção e paciência e explicito o meu propósito de apenas tentar aperfeiçoar as nossas instituições e mantê-las dentro dos ditames constitucionais, conquistados com sangue, suor e lágrimas do povo brasileiro, nas palavras que tomo emprestadas de Winston Churchill. Povo brasileiro do qual emana todo poder legítimo, conforme dispõe o Parágrafo único do art.1º da Constituição Federal.
Pilões, 13 de março de 2017
Iano Miranda dos Anjos