Justiça é a tradução do vocábulo latino iusticia (também possível de escrever-se justitia) e significa conformidade com o Direito, dar a cada um o que por direito lhe pertence, praticar a equidade.
Por sua vez, Direito vem do étimo latino directu e traduz o que é reto, probo e justo como também, segundo o dicionário Aurélio, é o conjunto das normas jurídicas vigentes num país ou a prerrogativa que alguém tem de exigir de outrem, em seu proveito, a prática ou de abstenção de algum ato.
Discorrendo, mais profundamente, sobre as origens dos vocábulos “direito” e “justiça”, anota a publicista Soraia Maria:
“Que significa a palavra ‘direito’? Qual a sua origem?”
Essa palavra tem sua origem num vocábulo do baixo latim: directum ou rectum, que significa “direito” ou “reto”.
Mas, existe outro conjunto de palavras que, nas línguas modernas, liga-se à noção de direito. Esse conjunto é representado pelos vocábulos: “jurídico”, “jurisconsulto”, “judicial”, “jurisprudência” etc.
Qual a origem desse vocábulo?
É visível que a etimologia dessa palavra encontra-se no termo latino jus (juris), que significa “direito”.
Alguns pretendem que jus se tenha constituído do idioma latino, como derivado do jussum, particípio passado do verbo jubere, que significa mandar, ordenar.
Outros preferem ver no vocábulo jus uma derivação do justum, isto é, aquilo que é justo ou conforme a justiça.
Como confirmação dessas hipóteses, são indicados vocábulos de uma tradição ainda mais antiga.
Jus, uma derivação da ideia de justiça ou de santidade (justum), o vocábulo do idioma védico yós, que significa bom, santo, divino, de onde parecem terem sido originadas as expressões Zeus (Deus ou par dos deuses, no grego) e Jovis (Júpiter, no latim).
Assim, para citar alguns autores que mais diretamente estudaram o problema, Ihering, que afirma: “Jus significa ‘vínculo’, da raiz sânscrita Yú (ligar), de onde derivam: jugo, jungir e outras inúmeras palavras”.
Mas, de outro lado, ilustres autores, como Schrader, Mommsen e Breal, adotam a tese de a palavra jus ligar-se ao que é justo, santo, puro. Para Breal o pensamento ancestralmente contido nessa palavra seria o da vontade ou do poder divino.
Evidentemente, textos de Direito Romano definem o direito como “a arte do bem e do justo”, ou a jurisprudência como “o conhecimento das coisas divinas e humanas e a ciência do justo e do injusto”. (www.recandodasletras.com.br/textosjuridicos/13136)
Estas expressões, na tradição ocidental, servem para designar tanto o direito como a justiça, mas, rigorosamente, não constituem sinônimos, até porque os romanos perceberam que nem todo direito é justo. Essa constatação, porém, veio do povo grego, como se pode colher de Sófocles, na obra Antígona; nessa peça, expõe que Antígona, filha de Édipo, se opõe à ordem imposta por seu tio, rei Creonte, por considerá-la injusta.
Embora não tenha sido o primeiro, o Código jurídico de Hamurabi é, decerto, o mais famoso. E, para isso, basta dizer que essa legislação se estendeu pela Assíria, Judeia e Grécia. Ele foi editado no 18º século a.C., pelo ano de 1.700, e contém 282 cláusulas. Em seu PRÓLOGO, destaca Hamurabi que foi chamado “para implantar a justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte... para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo”. Esse Código, depois de referir-se às três classes sociais: a do “awelum” (a classe mais alta, dos homens livres), do “mushkenum” (cidadão livre, mas de menor condição) e, por fim, a do “wardum” (escravo), cuidou do comércio, da família (inclusive o divórcio, o pátrio poder, a adoção, o adultério, o incesto), do trabalho (precursor do salário mínimo, das categorias profissionais, das leis trabalhistas) e da propriedade.
Quanto às leis criminais, vigorava a Lei de Talião: “a pena de morte era largamente aplicada, seja na fogueira, na forca, seja por afogamento ou empalação. A mutilação infligida de acordo com a natureza da ofensa”. (www.culturabrasil.pro.br/hamurabi.htm)
Essa “lex talionis” era também consagrada entre os hebreus, segundo o Antigo Testamento (Êxodo 21, 12 a 28; Levítico 24, 17 a 21). Encontrava-se ela, igualmente, no Código de Manu, o qual, para muitos legisladores, foi a primeira organização geral da sociedade, debaixo do manto religioso e político. Privilegiavam suas leis as classes superiores, sobretudo a dos brâmanes (sacerdotes). Já aquele que pertencesse à classe média ou inferior era duramente penalizado.
Direi, no entanto, que, no Sermão da Montanha, é bem diversa a pregação de Jesus, in verbis: “felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt, 5-6). E, em nota de pé de página a este capítulo, 1-12, lê-se:
“As bem-aventuranças são o anúncio da felicidade, porque proclamam a libertação, e não o conformismo ou a alienação. Elas anunciam a vinda do Reino através da palavra e ação de Jesus. Estas tornam presente no mundo a justiça do próprio Deus. Justiça para aqueles que são inúteis ou incômodos para uma estrutura da sociedade baseada na riqueza que explora e no poder que oprime”. (Edição Pastoral, PAULUS, São Paulo, 1990)
Em outra passagem bíblica, especificamente na Parábola dos operários da vinha, Jesus manifestou-se, outrossim, sobre a justiça e a injustiça. (Mt, 20, 1-16)
No que concerne ao conceito de justiça, adverte Chaïm Perelman: “não existe uma concepção que se mostre suficiente. Não se logra alcançar ‘a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos homens, sendo todas as outras apenas embustes, representações insuficientes que fornecem da justiça uma imagem falsa e se servem de uma justiça aparente que abusa da palavra ‘justiça’ para fazer que se admitam concepções profundamente injustas’” (apud José Renato Nalini, in justiça, pág. 15, editora Canção Nova, São Paulo 2008).
Segundo Platão, “a justiça é a virtude que rege e harmoniza tanto o agir dos particulares quanto o das multidões congregadas. A justiça garante a proporção entre as diversas partes, um todo compõe um todo orgânico, cada umas das quais a possuir uma virtude própria e particular – como a sabedoria, a fortaleza e a temperança. Todas essas virtudes estão subordinadas ao principio formal que vincula entre si as diferentes partes, o mesmo princípio que mantém unidas as demais virtudes. Platão identifica a justiça com a harmonia, a perfeição e a beleza”. ( in ob. cit., pág. 18)
Sócrates defendeu também a tese de que a virtude se identifica com o saber: quem age mal o faria por ignorância; quem age bem seria sábio.
Para Sócrates, não há um conceito geral de coisa alguma, inclusive de justiça. E, como externava todo o seu pensamento através de diálogos, obrigou, muitas vezes, “homens experimentados a elucidarem tudo o que sabiam sobre a justiça”. Perceberam estes homens que, no máximo, “se podiam citar exemplos de justiça e que eram incapazes de descobrirem o conceito geral que definiriam a justiça como tal”. E remata Pedro Durão:
“Segundo Sócrates, existe ‘uma’ justiça e não ‘a’ justiça”. (www.buscalegis.ufsc.br./revistas/index.php/.../11025)
Em se cuidando do conceito de Justiça, na Grécia Clássica, destaca-se, desde logo, a conhecida tríade: Sócrates, Platão e Aristóteles.
O primeiro nada deixou escrito, mas os seus ensinamentos foram desenvolvidos, sobretudo, por Platão em seus Diálogos (A REPÚBLICA OU DA JUSTIÇA, por exemplo) e por Xenofonte nos seus Memoráveis.
Nesse Diálogo (o segundo mais longo deles), Platão instaurou, através de Sócrates, a questão inicial, fundamental e central a que se subordinam vários temas: o que é a justiça? Nele, torna expressa a sua ideia de um estado em que a sua concepção de justiça seria aplicável e a própria justiça realizável e realizada e, estabelecendo o tema principal do diálogo, ou seja, no que consiste a justiça, pontifica:
“Discursaste admiravelmente, Céfalo. Mas, nos referindo especificamente a isso, ou seja, à Justiça, deveremos afirmar que consiste incondicionalmente em dizer a verdade e pagar todos os nossos débitos contraídos? Ou será realizar as coisas às vezes justo, às vezes injusto? O que quero dizer é, exemplificando: todos certamente concordariam que se um homem no seu juízo emprestasse suas armas a um amigo e as pedisse de volta quando estivesse fora de seu juízo, o amigo não deveria devolvê-las e não estaria agindo justamente se o fizesse. Tampouco deveria alguém se dispor a dizer toda a verdade a alguém que está fora de seu juízo”.
E continua:
“Tens razão”, concordou ele.
“Portanto, a definição de justiça não é dizer a verdade e restituir o que foi emprestado (ou recebido)”.
“’Por certo que é, Sócrates, interrompeu Polemarco, se tivermos de dar algum crédito a Simônides”.
E a discussão desenvolveu-se, a seguir, sobre a definição que esse poeta veio a dar sobre justiça, como se vê destes parágrafos:
“Diz-nos, então, ó herdeiro do argumento”, eu disse, “exatamente o que Simônides afirmou acerca da justiça que julgas correto”.
“Afirmou”, respondeu ele, “que é justo dar a cada um o que lhe é devido, o que considero um enunciado”. (pág. 47)
Penso que, no diálogo, achou-se a entender que Simônides afirmara que “amigos devem aos seus amigos aquilo que lhe é benéfico, nunca o que lhe é danoso”.
E veio a interrogação:
“Mas e quanto aos inimigos? Devemos dar a eles tudo o que lhes é devido?”
Platão foi incisivo na resposta:
“É indiscutível”, respondeu (num tom ligeiramente irritado), “devemos dar a eles o que lhes é devido...”. (pág. 48)
Na visão platônica, a justiça é uma virtude e que o justo é uma pessoa feliz. É o que se deduz deste diálogo:
“Bem, concordamos que a justiça é uma virtude da alma e a injustiça seu vício ou deficiência?”
“Concordamos”.
“Então se conclui que uma alma justa e um homem justo viverão bem, ao passo que o injusto viverá mal”.
“É o que parece, de acordo com a tua argumentação”.
“E certamente todos que vivem bem são bem-aventurados e felizes e todos que não vivem bem se encontram na situação inversa”.
“É claro”.
“E, portanto, uma pessoa justa é feliz e uma injusta infeliz”.
“Que assim seja.”
“É de se pensar que a ninguém interessa ser infeliz, mas sim feliz?”
“É claro.”
“Portanto, Trasímaco, a injustiça jamais é mais vantajosa que a justiça (págs. 84-85).”
Embora se considerando que a injustiça nunca sobrepuje a justiça, no pensamento de Platão, Trasímaco, um dos participantes desses Diálogos, enfoca a grande vantagem do mais forte, ou seja, do injusto.
É o que se há de ver:
“A injustiça é o oposto e governa os verdadeiramente simples e justos, e assim sendo governados realizam o que é vantajoso ao mais forte, tornando feliz aquele a quem servem, mas a si mesmos de modo algum. Deves encarar a matéria da seguinte maneira, meu ingênuo Sócrates: um homem justo sempre obtém menos do que um injusto. Em primeiro lugar, nos contratos mútuos, jamais constatarás, umas vez encerradas as sociedades, que um sócio justo ficou com mais do que um sócio injusto, ficando invariavelmente com menos. Em segundo lugar, nos assuntos concernentes ao Estado, quando se trata de pagar tributos, no que se refere a uma idêntica propriedade, o homem justo paga mais e o injusto menos; entretanto, quando o Estado se põe a distribuir riqueza, o justo nada obtém, ao passo que o injusto se locupleta. Finalmente, quando cada um deles ocupa uma posição administrativa num cargo público, um individuo justo, mesmo que não seja penalizado de outras formas, acaba por ver seus negócios privados arruinados porque tem de negligenciá-los, não auferindo nenhuma vantagem dos cofres públicos porque é justo e sendo odiado por seus parentes e conhecidos quando se nega a fazer-lhes um favor que envolve injustiça. Em todos os aspectos ocorre o contrário com um homem injusto. E, portanto, repito o que disse antes: uma pessoa de grande poder sobrepuja a todas as demais. Considera esse tipo de pessoa se quiseres aquilatar quão mais vantajoso é para o indivíduo ser injusto de preferência a ser justo.” (pág. 66)
Esse pensamento de Platão assemelha-se ao de Marx, filósofo alemão e o mais importante e influente teórico do Comunismo, como pode se extrair da Enciclopédia jurídica LEIB SOIBELMAN, em artigo postado por Leonildo Correia, in litteris:
“Para os marxistas, toda justiça é justiça de classe, toda a maquinaria judicial existe em função de defender os interesses de uma classe, evidentemente, a classe dominante, a que detêm os instrumentos de produção. Segundo eles, ainda, a classe dominante trata de generalizar para toda a sociedade o seu conceito de ‘justo’, ocultando atrás desse conceito assim universalizados os seus interesses ideológicos.”
Se considerarmos que o direito normalmente acatado, razão pela qual o número de litígios levados aos tribunais é infinitamente pequeno em razão da proporção de negócios que se fazem diariamente numa nação, o que concluiremos? Simplesmente que o aparelho judiciário existe para funcionar a serviço da classe dominante, aquela que pode pagar o preço da máquina judiciária.
A grande maioria da população não tem como pagar esse preço e a justiça é para ela um objeto de luxo. Não são os litígios que são poucos, poucos são os que podem pagar para sustentá-los em juízo. Litígios existem aos milhares, mas por uma injunção econômica a maioria dos prejudicados é obrigada a subordinar o seu interesse ao interesse alheio.
Carnelutti talvez não tenha percebido o quanto foi feliz em definir uma realidade socioeconômica quando definiu a pretensão como a subordinação de um interesse alheio ao nosso próprio interesse, e a lide processual como a reação ou resistência de alguém em não subordinar esse interesse próprio ao de outrem. Este, não conseguindo fazer predominar o seu interesse, recorre ao judiciário para fazê-lo.
Teoricamente esta construção é linda, mas Carnelutti parece ter pressuposto dois antagonistas da mesma situação social, como tendo as mesmas chances de usar dos serviços judiciários, o que não acontece na realidade que, inconscientemente, ele definiu de forma perfeita. A justiça não tem um conteúdo próprio, o seu conceito varia no tempo e o espaço, ela é e será sempre uma ideia a serviço de uma classe, razão pela qual o direito natural tenta pelo menos salvar alguns princípios fundamentais da vida humana com validade em qualquer tempo ou latitude, mesmo admitindo essa variação.
E aduz:
“Como ideia, a justiça será sempre uma esperança humana, será sempre um objetivo do homem, talvez o aspecto mais dignificante da existência. Mas a sua prática constante será sempre deficiente e falha, e para não ter maiores ilusões, o melhor é reconhecer o fato e conduzir-se por ele do que ficar no mundo das nuvens procurando uma justiça que não tem nenhuma condição de realizar-se de forma perfeita enquanto esperamos demais dos homens e das instituições”.
E conclui:
“Em suma, a justiça é uma ideia absoluta, de realização prática relativa. Não existe justa distribuição da prestação jurisdicional do Estado onde proliferam as grandes desigualdades sociais, e estas não são corrigidas pela assistência judiciária, pela Defensoria Pública ou pela Justiça do Trabalho ou ainda por Tribunais de economia popular”.
Todas estas instituições não passam de paliativos da fachada de um regime social que justamente delas necessita porque não funcionam bem.
Enfim, na visão platônica, agir com justiça é reconhecer a igualdade do direito do outro.
E, por considerá-lo, a justiça é reconhecida como a maior das virtudes, eis que é objetiva e a única que se liga ao Estado (ao contrário das outras virtudes sabedoria, temperança e coragem, que são subjetivas). Para ele em sua obra República, que é o Estado ideal, não existe diferenças entre lei e justiça.
No que concerne a Aristóteles, dir-se-á que foi discípulo de Platão durante 21 anos, após o que foi preceptor de Alexandre, que viria a se tornar Alexandre, o Grande.
Após a morte de Felipe, o pai de Alexandre, Aristóteles voltou a Athenas e fundou a sua escola, o Liceu, no qual costuma dar aulas e ministrar seus ensinamentos em caminhadas com seus discípulos. Nasceu daí a escola “Peripatética”, fundada por ele no ano de 336 a.C., significando, na língua grega, “ambulante” ou “itinerante”. Nessa época, faleceu sua primeira esposa Pítias, e ele passou a viver com Herpilis, com a qual teve um filho, chamado Nicômaco.
Em se cuidando da justiça e da injustiça – expõe Aristóteles-, “temos que indagar precisamente a que tipo de ações elas concernem, em que sentido é a justiça uma mediana e entre quais extremos o ato justo é mediano. Nossa (presente) investigação pode seguir o mesmo procedimento de nossas anteriores”.
E acentua:
“Observamos que todos entendem por justiça aquela disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar o que é justo, e, analogamente, por injustiça aquela disposição que leva os indivíduos a agir injustamente e desejar o que é injusto. Assumamos, então, essa definição a título de ponto de partida como altamente correta.
O fato é que não ocorre coisa idêntica com disposições se comparadas a ciências e faculdades. Parece que a mesma faculdade ou ciência se ocupa de coisas opostas. Uma disposição ou condição, entretanto, que produz um certo resultado não produz também os resultados opostos – por exemplo: a saúde não gera ações não saudáveis, mas somente as saudáveis; o caminhar saudável significa caminhar como um homem saudável caminha”.
E conclui:
“Consequentemente, às vezes a natureza de uma de duas disposições opostas é inferida da outra, às vezes as disposições são conhecidas a partir das coisas nas quais são encontradas; por exemplo, se sabemos o que é a boa condição corporal, sabemos a partir disso também o que é a má condição corporal, sabemos inclusive o que é a boa condição com base em corpos em boa condição, e sabemos quais corpos estão em boa condição se soubermos o que é boa condição. Assim, supondo que a boa condição seja a firmeza da carne, a má condição terá de ser a flacidez da carne, e uma dieta (alimentar) geradora de boa condição precisará ser uma dieta geradora de firmeza da carne”.
“E também se um de dois grupos correlativos de palavras é utilizado em vários sentidos, segue-se, como regra, que o outro é utilizado também em vários sentidos – por exemplo, se ‘justo’ tiver mais de um sentido, o mesmo acontecerá com ‘injusto’ e ‘injustiça’. Ora, parece que os termos justiça e injustiça são usados em vários sentidos, mas como seus usos equívocos apresentam estreita conexão, o equívoco não é detectado, ao passo que, no caso das coisas largamente distintas designadas por um nome comum, o equívoco é relativamente óbvio. Por exemplo (sendo diferença considerável quando se trata de diferença externa), o uso equívoco da palavra kleis (chave) para indicar tanto o osso na base do pescoço quanto o instrumento com o qual trancamos nossas portas”. (in Ética a Nicômaco, Livro V, págs. 145-146, tradução de Edson Bini, ed. Edipro, São Paulo 2009)
Para este célebre filósofo grego, “o termo ‘injusto’ é tido como indicativo tanto do indivíduo que transgride a lei quanto do indivíduo que toma mais do que aquilo que lhe é devido, o indivíduo não equitativo. Consequentemente, fica claro que o homem que obedece à lei e o homem equitativo serão ambos justos. O ‘justo’, portanto, significa aquilo que é legal e aquilo que é igual ou equitativo, e o ‘injusto’ significa aquilo que é ilegal e aquilo que é desigual ou não equitativo”.
E completa:
“Outrossim, uma vez que o indivíduo injusto é aquele que toma a porção maior, ele será injusto no que toca às coisas boas, não todas as coisas boas, mas aquelas das quais dependem a boa e a má sorte. Essas, ainda que sempre boas no sentido absoluto, nem sempre são boas para uma pessoa em particular. Contudo, esses são os bens pelos quais os seres humanos rogam e que perseguem, embora não devesse fazê-lo; devem, ao mesmo tempo em que escolhem as coisas que são boas para eles, rogar que seja possível que aquilo que é bom absolutamente também o seja para eles (particularmente)”. (in ob. cit, págs. 146-147)
No citado filósofo grego, percebe-se o caráter que constitui o valor da justiça. Em outras palavras, uma qualidade atribuída a uma conduta, a uma norma.
Há também a versão da justiça como virtude (págs. 147-148), de forte influência platônica. No âmbito social, o estagirista, pautado na natureza política do ser humano, vislumbra na justiça, ora um caráter comutativo ou sinalagmático, ora um caráter distributivo.
A despeito de ser um democrata, Aristóteles admitiu a escravidão, como se vê deste parágrafo:
“A justiça entre o senhor e o escravo e entre o pai e o filho não é idêntica à justiça política e à absoluta, mas apenas análogas a elas. Isso porque não existe a injustiça no sentido absoluto quanto ao que nos pertence, e uma propriedade ou um filho até que alcance uma certa idade e se torne independente é, por assim dizer, uma parte de nós mesmos e ninguém opta por prejudicar a si mesmo; consequentemente, não pode haver injustiça contra eles e, portanto, nada justo ou injusto no sentido político; isso porque o justo e o injusto, como já vimos, estão incorporados na lei e existem entre pessoas cujas relações estão naturalmente reguladas pela lei, isto é, pessoas que participam igualmente do mandar e do ser mandado. Por conseguinte, a justiça existe num grau mais completo entre marido e mulher ou pai e filhos ou senhor e escravos; com efeito, a justiça entre marido e mulher e justiça doméstica no sentido efetivo, ainda que isso, também, seja diferente de justiça política”. (págs. 162-163)
Antes, o mesmo filósofo asseverou:
“...e assim com as ações que servem de exemplo ao resto das virtudes e vícios, proibindo estes e ordenando aquelas – corretamente se a lei tiver sido corretamente (produzida) e promulgada, não tanto assim se foi produzida a esmo”.
E explicita:
“A justiça, então, nesse sentido, é virtude perfeita ainda que com uma qualificação, a saber, que é exibida aos outros (e não no absoluto). Eis a razão porque a justiça é considerada amiúde como a virtude principal não sendo ‘nem a estrela vespertina’ ou a ‘matutina’ tão sublimes, de modo que dispomos do provérbio... ‘Na justiça se encontra toda a Virtude somada.”’ (págs. 147-148)
Em outra passagem, também, em sua Ética a Nicômaco (Livro V), Aristóteles, segundo me parece, não tornou manifesta sua tendência democrática, in verbis:
“Isso também ressalta como evidente à luz do princípio da atribuição em função do mérito. Todos estão concordes de que a justiça no que respeita às distribuições tem que ser baseada em mérito de algum tipo, embora nem todos queiram dizer o mesmo tipo de mérito; para os democratas mérito se identifica com a condição de homem livre; aqueles que são adeptos da oligarquia o identificam com a riqueza ou o bom nascimento; os seguidores da aristocracia fazem desse mérito a virtude. A justiça é, portanto, uma espécie de proporção, sendo esta não apenas uma propriedade da quantidade numérica, mas também da quantidade em geral. A proporção é uma igualdade de relações e que envolve ao menos quatro termos”. (pág. 152)
Implicitamente, há de entender-se que os escravos jamais teriam mérito, pois não eram livres, e, nessa condição, jamais poderiam pertencer à oligarquia (que se identifica com a riqueza ou a condição nobre de nascimento) nem tampouco poderiam ser seguidores da aristocracia.
No Império Romano, predominou o Estoicismo, que é uma doutrina que identifica a verdadeira felicidade com a virtude, devendo o homem viver em harmonia com a razão cósmica e indiferente às vicissitudes da vida. Para essa filosofia, verdadeiro e bom é aquilo que nos indica a razão: ainda que o indivíduo não seja livre, poderá sê-lo no pensamento. E essa forma de pensar inspirou o direito romano anti-natural.
Para o Estoicismo, sendo o ser humano uma centelha da razão cósmica, todos eles são iguais, devendo-se, pois, dar a cada um o que lhe é devido conforme estatuído pela lei (natural ou positiva) e não de acordo com a ideia de justiça conforme Platão. Logo, nessa proposição, os estóicos seguiram Aristóteles.
Para Cicero (106-43 a.C.), que era estóico, o objeto da justiça é dar a cada um o que é seu ou o seu direito. E dele é a decantada expressão: “iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi” (a justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe pertence).
É dele, com certeza, esse conceito de justiça porquanto viveu bem antes de Ulpiano (170 d.C- 228 d.C) que o difundiu. Foi este um notável jurisconsulto romano, embora nascido em Tiro, na Fenícia. Foi ele que lançou os três conhecidos preceitos do direito: em latim honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente; não prejudicar ninguém; dar a cada um o que lhe pertence – Amilcare Carletti, in DICIONÁRIO DE LATIM FORENSE, pág. 121, Livraria Ed. Universitária de Direito LTDA, São Paulo, abril 1985). Escreveu diversos comentários sobre direito civil e acerca dos editos dos pretores e que constituíram a fonte principal do CORPUS JURIS CIVILIS de Justiniano.
Santo Agostinho, o principal expoente da Patrística, foi o responsável pela “cristianização” de Platão, o que o fez, ao traçar paralelos entre a teoria das ideias de Platão e o cristianismo. Para ele, a justiça consiste no respeito à Vontade Divina, no seguir a Verdade Divina.
Segundo o grande Doutor da Igreja, a justiça é também dar a cada um o que é seu, mas de acordo com a hierarquia da ordem natural criada por Deus: o corpo deve submeter-se à alma, a alma a Deus e às paixões. Todo ser racional – afirma – tem, inscrita em sua alma, a lei natural e o princípio de justiça natural. E enfatiza: é um princípio de equilíbrio entre o que se dá e o que é devido como suum. E destaca que a lex naturalis pretende que o homem alcance esse equilíbrio.
Finalmente, declara, explicitamente, que a igualdade absoluta e, portanto, a justiça perfeita só existe na Cidade de Deus (reino do inteligível) – ante Deus tudo homem é servo. E arremata:
“A Cidade dos Homens (reino do sensível) tem de submeter-se à Cidade de Deus”.
O estudo acerca da justiça, na obra de Santo Tomás de Aquino, consolida-se dentro do estudo da lex, que possui uma tríplice acepção: lex é entendida ora no sentido humano, ora no sentido natural, ora no sentido divino. Considera também o homem imagem e semelhança de Deus; deve ele aperfeiçoar-se para aproximar-se cada vez mais de Deus, seu fim último.
Para alcançar seu fim individual – afirma o Doutor Angélico -, o homem tem de valer-se dos outros e visar o bem comum, que é o fim último do homem no mundo e a razão de ser do direito; tal fim orienta para: a perfeição do homem; o bem comum; a orientação última para Deus, que é o fim transcendente e felicidade perfeita – o bem que, como em Aristóteles, é realização perfeita da natureza (essência do ser). Distinguiu São Tomás de Aquino a alteridade e a igualdade, como os dois elementos da justiça ou de seu objeto, o direito: o homem deve realizar sua procura por Deus, com os outros, que, igualmente, almejam a perfeição.
Santo Tomás de Aquino baseou-se na Ética a Nicômaco (Livro V) para conceituar a justiça como virtude específica – “o hábito pelo qual se fazem coisas justas” – e para afirmar ser ela a principal virtude moral, em função de sua sede estar na faculdade da alma chamada vontade e, portanto, próxima da razão. E explica: além dos três fatores constitutivos de toda virtude (o hábito, a ação e o bem), a justiça tem, ainda, sua característica específica: o bem é a igualdade para o outro.
Como definição de justiça, Santo Tomás de Aquino adotou a de Cícero, reproduzida por Ulpiniano: “justiça é vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito”. E adita: “a vontade (como apetite racional) é o fundamento principal do ato justo, porque, se houver ignorância, não existirá ato voluntário”.
Para Santo Tomás de Aquino, um dos mais notáveis Doutores da Igreja Católica, ainda que o direito, objeto da justiça, seja objetivo, ele não é o mesmo que a lei. É que a razão humana determina o que é justo, antes da existência da lei, e esta regra vem da prudência (que existe na razão e dela faz parte a arte de legislar) e, se for escrita, será transformada em lei quando esta estiver de acordo com a lei natural, que é a lei do ser racional que vem “lex aeterna” (vontade de Deus em suas criaturas), ela estabelecerá o que é o justo, na sua visão, é o que é igual ou adequado ao outro. Os elementos essenciais são, portanto, o igual e o outro, na forma do “jus suum”, ou seja, do devido ao outro.
Em suma, a solução clássica, formulada aqui expressamente por São Tomás de Aquino, na fórmula da justiça, dar a cada um o seu, o seu é o justo concreto; é aquela coisa que a virtude da justiça impele a dar a outro por constituir o seu. Em outras palavras: o justo é o seu de cada qual, o seu direito, aquilo que a justiça dá.
Enfim, é a justiça, segundo o Dicionário Aurélio, “a virtude de dar a cada um aquilo que é seu”. Por sua vez, virtude é “a disposição firme e constante para a prática do bem”, tendo este conotação moral.
Não seria completa essa pesquisa se não viessem à colação os conceitos de justiça enunciados por dois filósofos alemães: Marx e Kant, e do austríaco Kelsen.
Karl Heinrich Marx (Tréveris, 5 de maio de 1818 – Londres, 14 de março de 1883) foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista moderna, que atuou como economista, filósofo, historiador, teórico político e jornalista.
O pensamento de Marx influencia várias áreas, tais como Filosofia, Geografia, História, Direito, Sociologia, Literatura, Pedagogia, Ciência Política, Antropologia, Biologia, Psicologia, Economia, Teologia, Comunicação, Administração, Arquitetura e outras.
Para conhecer a concepção de justiça de Marx, bastaria citar a explanação de Ana Selva Castelo Branco Albinati quando, ao recorrer a Agnes Heller, em Além da Justiça, afirma:
“Neste texto, assim como em A condição política pós-moderna, a proposição marxiana não comparece como sendo uma ideia de justiça”. Em outras palavras:
Pode surgir a questão de não termos incluído o princípio “a cada um segundo suas necessidades” entre as ideias de justiça. Nós a excluímos deliberadamente porque, ao contrario da crença disseminada, esse princípio não é uma ideia de justiça. Ao contrário, esse princípio nos manda ir além da justiça.
E destaca:
“O seu raciocínio se desenvolve no sentido de discernir entre a justiça como meio e os fins aos quais ela visa, fins esses que se colocam como critério para as proposições diferenciadas de justiça. Nesse sentido, ao dizer que a ideia de justiça de Marx está além da justiça, significa, em sua análise, que tal ideia se fundamenta sobre uma concepção utópica de sociedade, a qual, a rigor, não necessitaria mais da justiça”.
E, ao dissertar sobre o tema: a ideia de justiça de Marx, escreve a Professora – Doutora do Departamento de Filosofia da Pucminas:
“...A ideia de justiça em Marx não significa um ideal de justiça a ser alcançado em virtude de uma dada natureza humana ou de uma filosofia da história de caráter escatológico. Diferentemente, parece-nos tratar de uma possibilidade que se vincula à expansão da capacidade produtiva social, uma vez regulada em outras bases societárias. A ideia de justiça em Marx rompe, com a métrica do equivalente, porque acompanha a superação histórico-social dessa medida. Essa possibilidade é antevista pelo autor a partir da compreensão de que as contradições do modo de produção capitalista, basicamente o suporte do valor sobre o tempo de trabalho e a constante redução desse tempo necessário em virtude do desenvolvimento das forças produtivas, acabaria por ‘lançar aos ares’ as premissas objetivas sobre as quais se edificaram as noções jurídicas modernas”. (www.ifch.unicamp.br/cemarx/)
Por sua vez, Eduardo José de Siqueira firma esta convicção:
“Entendia Marx que ‘o liberalismo apenas transferira de mãos o poder dos senhores feudais para a burguesia. A propriedade privada empregava o proletário que na condição de assalariado fazia crescer o poder da burguesia sem receber em troca qualquer parcela do poder. Só haveria uma maneira de se construir a sociedade justa, que era tornando propriedades comuns os bens de produção. Marx foi mais longe ainda, ao dizer que, se o capital permanecesse como patrimônio pessoal de alguns, daí resultaria que seus proprietários imporiam suas personalidades e iniciativas, enquanto os trabalhadores careceriam de ambas e, consequentemente, perderiam também sua própria liberdade. Por considerar essa estrutura injusta, Marx declara que a sociedade humana deveria aspirar a um Estado no qual fossem ‘abolidas a personalidade, a independência e a liberdade burguesa’”. (www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual)
Ao analisar o principio comunista formulado por Marx, doutrina Kelsen:
“Como uma ordem social comunista é, em primeira linha, uma ordem econômica, são consideradas antes de tudo as necessidades econômicas, como a necessidade de alimentação, de vestuário, de habitação, etc. O ideal comunista de justiça é, antes de tudo, o ideal da segurança econômica de todos os membros da comunidade, o qual pode ser realizado apenas através da economia planejada e não por meio da economia livre do sistema capitalista. Também o ideal de justiça comunista pressupõe, como a norma de justiça que manda dar ‘a cada um o seu’, uma ordem social sem a qual não pode ser aplicada. Todavia, sobre o conteúdo das suas determinações, sem as quais nem o postulado ‘cada um segundo as suas capacidades’ nem o postulado ‘a cada um segundo as suas necessidades’ podem obter satisfação, este princípio de justiça nos diz tanto como a fórmula ‘a cada um o seu’ sobre o que deve ser considerado como o ‘seu’ de cada um: não nos diz nada.
O segundo postulado do princípio de justiça comunista: “a cada um segundo as suas necessidades” também é respeitado, dentro de certos limites, nas ordens sociais não comunistas. Assim, a legislação de política social dos Estados modernos pode ser entendida do ponto de vista deste postulado”. (in O PROBLEMA DA JUSTIÇA, págs. 45-46, 5ª ed., Editora Martins Fontes, São Paulo, 2011 – Tradução de João Baptista Machado)
Consoante Stefan Sullivan, “os problemas levantados por Marx há cerca de 100 anos – a miséria, a corrupção e a alienação (que pelos excessos cometidos pelo capitalismo vigente) – não desapareceram”. Isso significa que a crítica de Marx ao sistema mantém-se válida ainda hoje. E comenta:
“Se os abusos do capitalismo que Marx desafiou e exibiu persistem” – comentou Sullivan-, “se a corrupção e a hipocrisia das estruturas de poder dominante ainda existem sobre o frágil véu da legitimidade democrática, e se o mercantilismo desenfreado continua a ameaçar a cultura e o lazer em suma, se as imperfeições da economia, da política e da esfera cultural espalham-se amplamente, então o esforço para aposentar o marxismo juntamente com os Estados socialistas é prematuro”. (apud Fernando Magalhães, in 10 Lições sobre Marx, págs. 28-29, Editora Vozes, Petrópolis 2009)
Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 – Berkeley, 19 de abril de 1973) foi um jurista e filósofo austríaco, um dos mais importantes e influentes do século XX, tendo sido um dos produtores literários mais profícuos de seu tempo, tendo publicado cerca de quatrocentos livros e artigos, destacando-se a Teoria Pura do Direito pela difusão e influência alcançada.
É considerado o principal representante da chamada Escola Normativista do Direito, ramo da Escola Positivista. Judeu, Hans Kelsen foi perseguido pelo nazismo e emigrou para os Estados Unidos da América, onde viveu até seus últimos dias e onde exerceu o magistério na Universidade de Berkeley, vindo a falecer nesta mesma cidade californiana.
Segundo Kelsen, a justiça pertence ao domínio da moral, mas – ressalva – “nem toda norma moral é uma norma de justiça, nem toda norma de moral constitui o valor justiça”.
E salienta:
“Apenas uma norma que prescreva um determinado tratamento de um individuo por outro individuo, especialmente, o tratamento dos indivíduos por parte de um legislador ou juiz, pode ser considerado uma norma de justiça”.
E exemplifica:
“A norma: ‘não devemos suicidar-nos’ pode ser norma de uma moral que proíbe tal conduta em razão dos seus maus efeitos sobre a comunidade. Mas esta norma não pode ser uma norma de justiça, pois não prescreve um determinado tratamento de um homem por parte de outro homem. Quer dizer: o suicídio pode ser julgado imoral, mas não injusto”.
E, assim, arremata:
“A justiça é, portanto, a qualidade de uma conduta humana específica de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A conduta, que é um fato da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confrontada com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser”. (in ob.cit. pág. 4)
Kelsen rejeita a ideia de uma justiça absoluta. Pauta-se na máxima romana sumum jus, summa injuria. Afirma que a ideia de justiça está na busca que todo homem tem pela felicidade, do que se deduz que seguiu Aristóteles, o qual pôs o conceito de felicidade como ponto central de sua ética. Acrescenta que esta deve ser vista sob o ângulo coletivo. A felicidade social só será possível, segundo o jusfilósofo austríaco, em uma ordem justa.
Apesar de considerar por demais razoáveis as ideias de Marx, para quem os que comandam o Estado são os que determinam o que é e o que deixa de ser justo, tanto pela elaboração de leis, tanto pelo julgamento do caso concreto, gostaria de proclamar que, entre os filósofos mencionados neste pequeno estudo, sobressai, sem qualquer dúvida, o alemão Immanuel Kant (1724-1804), que é também um dos maiores nomes da história da filosofia. E direi o porquê dessa afirmativa: foi o único que introduziu no conceito de justiça o de liberdade.
Apresenta-se, dessarte, a sua ideia de justiça:
“1 – Justo é o que reconhece o único Direito Natural do Homem – a liberdade – e a igualdade de todos os seres racionais que possuem esse Direito Inato (liberdade);
2 – Justo é o que respeita as liberdades externas de todos os homens, limitadas pelo princípio de igualdade, de acordo com a lei universal, para fazê-las compatíveis, promovendo, assim, a organização da sociedade (a sociedade civil);
3 – Justa é a lei que favorece a liberdade como autonomia – a lei cada vez mais racional, que cria uma legislação jurídica universal, como expressão da vontade geral da qual cada um deve participar (igualdade de participação), como garantia da Paz Perpétua num contexto final (o homem na república e na sociedade das nações)”. (www.trigueiros.com.br/filosofia/justiça.htm)
Este site, vocábulo inglês hoje aportuguesado, extraiu estas ilações do mais famoso livro de Kant – Crítica da Razão Pura. (Editora Martim Claret LTDA., São Paulo, 2010)
O alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) foi (e é) o maior jurista brasileiro de todos os tempos, bastando, para essa assertiva, lembrar, além dos Comentários ao Código de Processo Civil e à Constituição Federal, o Tratado de Direito Privado, com 60 volumes e 30.000 palavras.
Para esse douto jurista:
“O direito é revelado pela lei. O processo revelador do direito é expresso através dos conceitos com os quais são formuladas as regras jurídicas. Estes, os conceitos, são veiculados através das palavras. ‘Entre a palavra e o real está o conceito’. Os referidos conceitos ‘têm a sua fixação histórica e hão de ser precisados’”. Históricos, no sentido externo, social e não interior, psicológico, pois não se trata de buscar a vontade do legislador. Mais. O conceito aqui mencionado é, em regra, geral ou abstrato, uma vez que a generalidade ou a abstração não é essencial à lei, pois, como salienta Pontes de Miranda:
“Só excepcionalmente a lei cogita de um só caso, sem que esse caso seja, sozinho, a sua classe. A generalidade não é, pois, essencial à lei; é exigência que, através da evolução humana, se vem fazendo à lei”.
Neste passo, afirma Lourival Vilanova: “Pontes não nega a existência de lei para classe de um só caso (classe unitária, em terminologia lógica: nega que atos jurídicos sejam fontes de produção de normas, gerais ou individuais)”.
Sendo conceito, este terá o condão de enunciar os elementos ou as qualidades que um objeto possuíra para que haja a subsunção. Não é papel do conceito estipular que o objeto deve ter esta ou aquela propriedade. É um juízo descritivo. Saliente-se, por oportuno, que Hans Kelsen não admite a categoria conceito no interior da norma jurídica, pois o conceito estipula o que “é e não o que deve ser”. (www.jus.uol.com.br/revista/texto/7960)
Por fim, não me furtaria o prazer de trazer à baila o pensamento do Des. José Flóscolo da Nóbrega (1898-1969), meu professor e de várias gerações que em sua obra Introdução ao Direito, comentou com aquela simplicidade, que lhe era peculiar, o conceito de justiça, in litteris:
“É no sentimento de igualdade entre os encargos e as vantagens da vida em comum, que vamos encontrar as raízes do sentimento elementar da justiça. Por mais duro que sejam tais encargos, o homem os aceita, pois sem eles não haveria sociedade e sem esta não poderia o homem subsistir no mundo. E chama de justo todo ato que pode satisfazer essa necessidade básica da vida social, e chama de justiça a relação entre esses atos e a satisfação daquela necessidade. A igualdade é a nota essencial à justiça – igualdade entre o que se dá e o que se recebe, entre o necessário e o concedido, entre a pena e o castigo, entre a recompensa e o castigo.
A igualdade não leva em conta as diferenças e desproporções da vida, nem as injustiças que resultariam de aplicar o mesmo tratamento a situações inteiramente desiguais – exigir o mesmo de ricos e pobres, velhos e crianças, homens e mulheres. Foi assim necessário completá-la com o princípio da proporcionalidade, que é a igualdade em sentido geométrico – tratar igualmente os casos iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um segundo suas necessidades e exigindo de cada um conforme suas possibilidades.
Uma terceira nota característica é a alteridade, que significa ser a justiça uma relação com outra pessoa, um alter. Ninguém é justo consigo mesmo, o ato justo, ou injusto, tem sempre um alvo externo e tem por objeto interesses de outrem”.
Estão expostas, aí, as notas essenciais da justiça cuja definição, segundo o insigne jurista, é esta: “a justiça, do ponto de vista formal, é o cumprimento dos deveres jurídicos; no aspecto material é a adequação da atividade humana aos interesses da segurança e da ordem social, segundo os princípios da igualdade e da proporcionalidade”. (in ob.cit., págs. 53-54, 8ª edição, Edições Linha D´Água, João Pessoa 2007)
Encerrando, gostaria de citar essas máximas:
“Cometer injustiça é pior do que sofrê-la.” (Platão)
“A mais bela função da humanidade é a de administrar a justiça.” (Voltaire)
Finalmente, gostaria de dizer – e essa é a minha convicção – que a pior injustiça é aquela cometida pela própria Justiça, isto é, o Poder Judiciário.
João Pessoa/PB, 31 de maio de 2011.