Autor: Desembargador Aluizio Bezerra Filho
25/02/2025
De acordo com a teoria, não é necessário que uma pessoa pratique diretamente uma conduta ilícita para ser responsabilizada. Basta que possua controle sobre a execução do fato, podendo determinar ou influenciar decisivamente sua ocorrência. A aplicação dessa teoria é particularmente relevante em casos envolvendo líderes que, mesmo sem agir diretamente, exercem autoridade sobre subordinados que praticam atos ilícitos.
No âmbito da improbidade administrativa, a teoria do domínio do fato pode ser utilizada para atribuir responsabilidade a gestores, líderes políticos ou outros agentes públicos que, embora não tenham praticado diretamente o ato de improbidade, tenham dado ordens, consentido ou criado as condições necessárias para a sua ocorrência.
A título de exemplo, nas gestões municipais ou estaduais da administração pública, as contratações de servidores temporários são realizadas por ato dos secretários, na condição de ordenadores de despesas. No entanto, a responsabilidade administrativa alcança os governadores e prefeitos, pois, além de terem conhecimento dessas práticas, dirigem fatalisticamente as atividades de seus subordinados. Ademais, é pouco plausível que os secretários formalizem tais contratações sem prévio conhecimento e permissão (ainda que tácita) de seus superiores.
Autores diretos de ato ilícito
Nesse sentido, a teoria estabelece que, além dos autores diretos de um crime ou ilícito (aqueles que o executam fisicamente), também podem ser considerados autores aqueles que exercem controle sobre os atos criminosos ou ilícitos, mesmo sem realizá-los diretamente. Isso é especialmente relevante em situações em que há divisão de tarefas e a execução ocorre sob a direção ou controle de outra pessoa.
Claus Roxin (‘Autoria y Domínio del Hecho’, p. 81, 7ª ed., 2000, Marcial Pons) classificou o domínio do fato em três categorias, amplamente aceitas pela doutrina, quais sejam: domínio da ação, domínio da vontade e domínio funcional do fato. Terá domínio da ação aquele que realiza diretamente o crime, ou seja, o executor, pois tem o controle físico sobre o fato. Por sua vez, terá domínio da vontade aquele que utiliza outra pessoa para cometer o crime, seja por meio de coação, engano ou exploração de uma situação de vulnerabilidade. Aqui, o autor tem controle sobre a vontade do executor, como em casos de coautoria mediata ou autores intelectuais.
A última categoria elencada por Roxin, a do domínio funcional do fato, ocorre quando há divisão de tarefas entre os autores de um crime, sendo cada um essencial para sua execução. Todos compartilham o controle da situação, como em organizações criminosas.
Legitimação de acusações
É relevante consignar que a teoria do domínio do fato não se presta a legitimar acusações contra quem “teria que ter conhecimento” de um crime, mas sim a responsabilizar aqueles que efetivamente tinham conhecimento e determinação para a consecução do delito. Conforme decidido pelo STF (HC 127397, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 06/12/2016), a teoria é aplicável quando o agente se oculta nas engrenagens de uma organização estruturada de poder.
Hans Welzel (1939), por sua vez, sustenta que o autor é aquele que detém o controle final do fato, decidindo sobre sua prática, interrupção e circunstâncias (“se”, “quando”, “onde”, “como”, etc.). Já o partícipe apenas coopera, sem ter domínio sobre o fato.
Administração pública
No contexto da administração pública, governadores e prefeitos têm ciência das contratações ilegais realizadas por seus subordinados e delas se beneficiam eleitoralmente, considerando que agentes políticos que concorrem a cargos eletivos utilizam tais contratações para obter apoio. O inequívoco conhecimento dessas autoridades decorre, entre outros fatores, da publicidade conferida a tais atos pelos Tribunais de Contas.
Assim, qualquer ato ilícito formalizado por subordinados da autoridade superior, que não aconteceria sem o seu consentimento ou conhecimento — especialmente aqueles de contrato de valores expressivos ou de grande impacto para a gestão administrativa —, tem como coautor o superior hierárquico. Essa imputação se fundamenta na Teoria do Domínio do Fato, pois, sem sua aquiescência, a prática ilícita não teria ocorrido.
A propósito, impende-se a transcrição de alguns precedentes sobre o tema:
Coautoria — Caracterização — Colaboração importante para a execução do latrocínio — Agente que sabia estar o comparsa armado e aceitou os desdobramentos consequenciais do evento, à luz do moderno Direito Penal da culpabilidade — Condenação decretada — Recurso provido — ‘O apelado detinha o domínio funcional do fato, ao lado do comparsa. Era-lhe fácil prever as consequências que poderiam surgir, como realmente surgiram. Ele aceitou, claramente, todos os desdobramentos consequenciais do evento criminoso, de modo que, mesmo à luz do moderno Direito Penal da culpabilidade perfilhada a inspiração da teoria finalista, impõe-se reconhecer a decisiva e importante cooperação do apelado, para o resultado. A característica básica da teoria finalista é esta: ‘a vontade está dirigida a um fim e integra a própria ação’, segundo o magistério do Prof. Manoel Pedro Pimentel (O Crime e a Pena na Atualidade, Ed. RT, 1983, p. 113)’ (RJTJSP 103/429, Rel. Des. MARINO FALCÃO — )
‘Coautoria caracterizada — Irrelevante não ter o apelante praticado nenhum ato material de execução dos crimes – Ocorrência da chamada divisão do trabalho, cabendo-lhe complementar com sua parte a execução da empreitada criminosa, passando a ter o domínio funcional do fato.’ (RT 722/436, Rel. Des. SEGURADO BRAZ — )
‘Agente que não atuou na execução material dos delitos. Possibilidade de ser considerado coautor, se na empreitada criminosa concertada por prévio acordo de vontades, lhe foi incumbida atividade complementar para a obtenção da ‘meta optata’, cabendo-lhe parte do ‘domínio funcional do fato’. Divisão do trabalho que importa na responsabilidade pelo todo, independentemente de não ter o agente atuado na execução material dos crimes em sua totalidade, mas todos conducentes à realização do propósito comum’ (Boletim IBCCrim 29/999, Rel. Des. SEGURADO BRAZ —).’
Teoria da obediência devida
Conexa à teoria do domínio do fato, a teoria da obediência devida é utilizada para justificar a isenção de responsabilidade em certos contextos, notadamente quando uma pessoa age sob as ordens de uma autoridade superior e não pode ser considerada plenamente responsável. Contudo, no âmbito da administração pública, essa teoria não afasta o reconhecimento do concurso de pessoas, pois os secretários de estado ou de entes mirins, na qualidade de agentes públicos, têm o dever funcional de “cumprir ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”, conforme preceitua o Estatuto do Servidor Público Federal (artigo 116, IV). Além disso, todos os agentes públicos e políticos estão subordinados ao princípio da legalidade (artigo 37 da Constituição).
Assim, secretários estaduais ou municipais que executam contratações ilegais agem com dolo, pois têm ciência da ilegalidade. Assumem, portanto, a responsabilidade de produzir o resultado à margem da legalidade. Além disso, essa conduta configura dolo específico, uma vez que os contratos beneficiam eleitores escolhidos ou indicados pelos gestores (governador/prefeito), caracterizando, na prática, uma forma administrativa de compra de votos com recursos públicos.
A contratação de servidores sem concurso viola os princípios constitucionais da legalidade (burla ao concurso público), da moralidade (favorecimento eleitoral), da impessoalidade (beneficiário escolhido pelo gestor) e da publicidade (contratos não publicados oficialmente). Tal prática configura improbidade administrativa (artigo 11, V, LIA) e crime contra as finanças públicas.
No caso dos prefeitos, tais condutas podem configurar crimes de responsabilidade (Decreto-Lei 201/1967), especialmente: apropriação ou desvio de bens ou rendas públicas (artigo 1º, I); utilização indevida de bens, rendas ou serviços públicos (artigo 1º, II); ordenação de despesas não autorizadas (artigo 1º, V); e, nomeação de servidores contra expressa disposição de lei (artigo 1º, XIII).
Improbidade administrativa
A fim de impedir essas práticas, caberá ao Ministério Público, na defesa da ordem pública e do patrimônio público, propor ação de improbidade administrativa e ação penal contra as autoridades responsáveis. Ao cidadão comum será possível propor ação popular no âmbito administrativo e civil e/ou promover uma representação junto ao promotor de justiça da sua comarca, que adotará as medidas cabíveis, conforme o caso.
Além das medidas repressivas já mencionadas, a implementação de mecanismos preventivos de controle, como o fortalecimento dos sistemas de compliance público, a modernização dos procedimentos de fiscalização e a capacitação contínua dos servidores públicos em ética e integridade mostram-se imprescindíveis. A transparência ativa e o controle social também devem ser incentivados como ferramentas de prevenção à improbidade administrativa.
Para maior efetividade no combate às práticas ilegais na administração pública, é essencial a atuação coordenada entre os órgãos de controle, como Tribunais de Contas, Ministério Público e Controladoria-Geral. A troca de informações e a uniformização de entendimentos sobre a aplicação da Teoria do Domínio do Fato podem contribuir para uma jurisprudência mais consistente e uma atuação mais eficaz no combate à corrupção e à improbidade administrativa.
Por fim, destaca-se que a responsabilização dos agentes públicos com base na Teoria do Domínio do Fato não deve ser vista apenas como instrumento punitivo, mas principalmente como mecanismo de preservação da moralidade administrativa e da própria democracia. A teoria serve, portanto, como importante ferramenta para combater a cultura da impunidade e promover uma gestão pública mais ética e comprometida com o interesse público.